Originalmente publicado no Awestruck Wanderer
PRÓLOGO
Em 2014, passei uma tarde inteira vagando pela exposição Evolution, maravilhosamente produzida pelo Festival Internacional de Cinema de Toronto (TIFF) em uma homenagem a um dos maiores artistas vivos do Canadá, David Cronenberg. Eu já era um admirador de sua obra – assisti todos os filmes que Cronenberg já fez, e alguns deles várias vezes – mas a homenagem do TIFF a essa grande mente criativa me levou a uma emocionante “viagem pelos trilhos da memória” (para citar uma frase memorável do personagem de Ed Harris em A History of Violence). Desde o final da década de 1960, Cronenberg vem produzindo alguns dos filmes mais instigantes e originais que já vi, e neste artigo pretendo argumentar que seu corpo de trabalho merece nossos grandes elogios por suas realizações artísticas. Não vejo por que ele deva ser confinado aos limites de gêneros como ficção científica e horror: Cronenberg foi muito além dos limites do “cinema especializado” e construiu um legado cinematográfico que carrega a marca de sua visão de longo prazo e de sua imaginação singular.
Eis um artista que nunca se furta a temas desafiadores: adaptou para o grande ecrã algumas obras de literatura consideradas “infilmáveis” (como Naked Lunch, de William Burroughs, ou Cosmopolis, de Don De Lillo); retratou perversões sexuais e fetichismo por carros de maneiras impactantes (em seu filme sobre J. G. Ballard's Crash); ele se engajou em um debate com as teorias de Marshall McLuhan sobre a mídia - "o meio é a mensagem" - e seus efeitos sociais (sobretudo no Videodrome); explorou os mistérios da psicologia sobretudo em manifestações de esquizofrenia, paranóia, depressão, crise de identidade, entre outros cantos obscuros da mente (em filmes como Dead Ringers - Gêmeos Mórbida Semelhança, The Brood, Spider...). Cronenberg, para resumir, pode ser entendido como um filósofo do cinema, que usa sua arte para tentar compreender o mundo ao seu redor, compartilhar seus medos e dúvidas sobre os caminhos trilhados pela civilização ocidental e nos despertar do sono de conformidade ao soar os alarmes sobre processos duvidosos através do qual as mentes e os corpos humanos estão sendo transformados, radicalmente transmutados.
Algumas pessoas supersensíveis certamente podem se afastar de seu trabalho com nojo e horror, alegando que o cara é obcecado por criaturas nojentas, mutantes desagradáveis e monstruosos, vírus assustadores incontroláveis, muito derramamento de sangue e carnificina. Há definitivamente um sabor de filme B em alguns dos trabalhos de Cronenberg, mas isso não significa que suas investigações sejam estreitas e superficiais. Se alguns de seus filmes estão longe de ser atraentes, e se suas escolhas estéticas têm forte tendência de afronta ao kitsch, isso nos leva a perguntar: é o papel do artista apenas nos acariciar e nos entreter ao invés de nos provocar, chocar e expulsar de nossas zonas de conforto? Nas seguintes explorações dos filmes de Cronenberg, tentarei destacar a grande contribuição que sua arte incorpora à reflexão sobre a psicologia humana e os mistérios subjacentes às mutações de nossas identidades em meio à evolução tecnocientífica cada vez mais célere em nossa sociedade perpassada por sísmicas transformações.
I. A NOVA CARNE
Na exposição Evolution do TIFF, afirmou-se que “Cronenberg demonstra um grande interesse em médicos e cientistas que iniciam experimentos com consequências imprevistas, muitas vezes desastrosas”. Muito bem observado: no reino de Cronenberg, a ciência e a tecnologia muitas vezes produzem desastres e monstros. Ele está na linhagem de Mary Shelley. As coisas nunca parecem sair do jeito que foram planejadas nos filmes repletos de equívocos humanos que Cronenberg faz. Há um abismo entre as boas intenções e os resultados reais dos experimentos – e esse abismo é aquele que Cronenberg adora explorar conosco. Em muitos casos, é como se a Ciência estivesse sendo vista pelas lentes de suas vítimas, pela perspectiva dos abusados ou perturbados por ela. “A história é um pesadelo do qual estou tentando acordar”, diz o famoso dito de James Joyce em Ulisses. Ao assistir aos filmes de David Cronenberg, frequentemente tenho a sensação de estar entrando em um mundo de pesadelo, onde epidemias e pragas se espalham, cabeças humanas explodem de repente, cérebros ficam confusos devido a intervenções médicas, o consumo de drogas farmacêuticas ou as manipulações científicas de cobaias são desmascarados como práticas equivocadas. Parece que a Ciência é um pesadelo do qual Cronenberg está tentando acordar. E que ao filmar suas visões distópicas ele consegue compartilhar seus pesadelos com seu público perplexo. William Burroughs disse uma vez, mais tarde citado por Kurt Cobain em uma música punk do Nirvana: “só porque você é paranóico, não significa que eles não estão atrás de você”. Da mesma forma, pode-se dizer dos pesadelos filmados de Cronenberg: só porque são pessimistas e aterrorizantes, não significa que não possam se tornar realidade. Basta lembrar de Chernobyl, no passado; basta dar uma olhada em Fukushima ou Brumadinho; com essas catástrofes em mente, as fantasias de contaminação que Cronenberg concretiza aparecerão aos nossos olhos como explorações de possibilidades que infelizmente podemos realizar. A originalidade do cinema de David Cronenberg reside, entre outros elementos, na forma como questiona as consequências dos “avanços” tecnológicos e das experiências científicas: pode ser um novo tipo de psicoterapia que se baseia na expressão não reprimida da raiva (The Brood); pode ser a evolução de videogames imersivos e ambientes artificiais/digitais acessáveis através de bioportas (eXistenZ); pode ser uma nova droga supostamente destinada a transformar a vida na Terra em um Paraíso quimicamente induzido (como o efemerol em Shivers - Calafrios); podem ser inovações nas áreas de cirurgia, genética ou robótica…
O cinema de Cronenberg é certamente distópico, sombrio, "pessimista", e nos seus filmes se obtém um “clima” de ansiedade e preocupação decorrentes dos possíveis resultados de nossa auto-construção, dos esforços da humanidade para se transformar e transcender suas limitações presentes. Todo mundo que viu alguns de seus filmes sabe que experimentos científicos – inclusive os da área da Psicologia, que interessam muito a Cronenberg! – podem acabar dando terrivelmente errado. E uma das emoções de assistir seus filmes vem do fato de sabermos que esse artista não vai nos poupar, que vai nos fazer enfrentar alguns acontecimentos sangrentos e perturbadores, abalando nossas crenças ingênuas numa harmonia pré-estabelecida entre ciência, progresso e harmonia social. Desde o início de sua carreira, com Stereo (1969) ou Crimes of the Future (1970), Cronenberg foi alguém interessado na descrição de “ambientes laboratoriais” mas dentro deles não haviam ratos: em seus filmes, os ratos de laboratório são sempre seres humanos. Em uma entrevista, o diretor afirma que nunca faz “filmes de monstros”, mas sim descreve as formas pelas quais o corpo humano pode vir a se transformar em um organismo "pós-humano" monstruoso e incontrolável. Em Cronenberg, a ilusão de segurança e controle quase sempre acaba terrivelmente despedaçada com a erupção do caos e das consequências imprevisíveis da tecnologia humana. A exposição EVOLUTION do TIFF afirmava que Cronenberg deve ser entendido como um dos maiores pensadores de toda a história da cultura canadense – e concordo inteiramente. Não se trata porém de confiná-lo ao Canadá. Cronenberg é "um filósofo da tela grande" com tanto a nos dizer quanto figuras como Jean Baudrillard, Pierre Lévy, Manuel Castells, Negroponte, Nicholas Carr, ou outros dos pensadores de nossa atual Era Tecnológica. É notável a contribuição de Cronenberg para um debate interdisciplinar sobre genética e eugenia, obsessões e fetichismo, biotecnologia e cientificismo, dentre tantos outros temas.
O “clima” na maioria de seus filmes deixa claro que Cronenberg não está comprando ingenuamente a ideologia que diz que o progresso tecnológico e científico nos levará ao Paraíso na Terra. É bastante frequente, nos filmes, que a tentativa de cientistas humanos de remodelar nossos corpos acabe estragando tudo. As transformações que o corpo humano sofre com suas constantes interações com a tecnologia, a forma como nossos corpos e mentes acabam incorporando a tecnologia, é uma das obsessões de Croneberg. As bioportas do ExistenZ são o melhor exemplo: buracos em nossos corpos, semelhantes à porta de entrada de um computador, através dos quais podemos ser conectados a um reino artificial que nos separa da realidade “natural” do dia-a-dia, conduzindo a uma vertiginosa matrioshka de alucinações. Décadas antes, ele já havia pintado um retrato sangrento das possíveis evoluções da televisão alucinatória em seu inesquecível Videodrome. Lá ele explora as possíveis transformações da mídia, tropeçando nas ideias de McLuhan, para acabar criando uma distopia de pesadelo, cheia de capacetes alucinatórios e mutações muito estranhas que dão origem a uma “nova carne”. O efeito de passar por vários passeios de montanha-russa no parque da ficção científica de Cronenberg é, entre outros, este: ceticismo sobre as maravilhas trazidas a nós pelos avanços da tecnologia e da ciência. A imaginação de Cronenberg pode parecer um pouco “paranóica”, no sentido de que sua fantasia brota do medo de que as coisas possam ir horrivelmente para um cinzeiro de boas intenções. No entanto, argumento que esta obra pode ser salutar para o desenvolvimento de nossa lucidez. Ele nos conduz à suspeita de que está grávida de catástrofes a civilização humana que se nos aventura em graus cada vez maiores de artificialidade. Mas não há uma gota de idealização do passado, ou do "Homem Natural" de Rousseau, na obra de Cronenberg: ele não parece ver nenhum caminho para trás (nostálgico e regressivo) que nos leve de volta a como as coisas costumavam ser. Pode-se dizer que este cinema se angustia profundamente com a irreversibilidade do tempo enquanto retrata os perigos da artificialidade. Também seria injusto dizer que ele está condenando os avanços tecnocientíficos; parece-me que Cronenberg tenta sublinhar a ambiguidade/ambivalência destes processos que desenvolvemos. Eles podem ter resultados amplamente benéficos para a medicina e a saúde, por exemplo, mas o outro lado da moeda – o lado do pesadelo – também merece ser levado em consideração. Um exemplo: claro que seria tolice negar a importância dos raios X, por exemplo, para o diagnóstico de doenças, mas também seria tolice (e perigosa!) ignorar que a radiação pode fazer aqueles expostos a um excesso destes raios sofrerem consequências terríveis.
Nada nos garante que a "New Flesh" seja uma evolução da anterior – pode ser um retrocesso. Pode ser o desencadeamento de forças que seremos incapazes de controlar. Pode ser uma nova carne monstruosa, pesadelos se tornando realidade. Seria injusto desprezar e subestimar a visão artística de Cronenberg se o tratássemos como um pessimista sempre obcecado por desastres. Claro que há muito derramamento de sangue em seus filmes – basta lembrar o final de Uma História da Violência, que rivaliza com as cenas mais horríveis da obra de Tarantino ou Sergio Leone. Mas um debate sobre a violência no cinema não pode deixar Cronenberg de fora: algo bastante original e único está envolvido nessa peculiar marca de ultraviolência cinematográfica em seus filmes. Eu diria que a profundidade que podemos encontrar em seus filmes, se ao menos nos aprofundarmos o suficiente em suas camadas secretas, surge de um questionamento ansioso dos caminhos reais de nosso mundo.
Nada nos garante que o New Flesh seja uma evolução do anterior – pode ser um retrocesso. Pode ser o desencadeamento de forças que seremos incapazes de controlar. Pode ser pesadelos se tornando realidade. Cronenberg está profundamente preocupado com o que está acontecendo com o nosso mundo, mesmo que às vezes ele pareça estar filmando alguma sociedade futura ou alternativa. A visão de Cronenberg foi rotulada por muitos como “distópica”, e sinto que isso é bastante preciso: esse cara não está filmando utopias onde a perfeição e a harmonia foram realizadas. Ele está muito mais interessado em deixar seus piores pesadelos terem uma existência objetivada como filme – e assim tantos outros podem sonhar os pesadelos de Cronenberg. Para resumir, eu diria que ele se engaja em um cinema angustiado, com sabor distópico, com várias irrupções de ultraviolência, por meio do qual Cronenberg atua como crítico da sociedade comercial-industrial ocidental. Por isso, entre muitos outros, merece reconhecimento como um artista de muitos méritos, entre eles o fato de soar os alarmes sobre as possíveis consequências da tentativa da humanidade de remodelar profundamente a Natureza – inclusive esta parcela do mundo natural que é a humanidade, cada vez mais mergulhada nas vertentes do ciborguismo (o ciber-organismo).
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II. A REFORMULAÇÃO DA NATUREZA E AS TENTATIVAS HUMANAS DE AUTO-TRANSCENDÊNCIA
Se há algo em nossa era que parece ser uma verdade compartilhada, um ponto de concordância e sem controvérsia, é que a humanidade vem remodelando a Natureza em grande escala e de várias maneiras por meio de intervenções tecnológicas, inovações médicas, avanços na manipulação genética etc. Se o gênero artístico de “Ficção Científica” deve sobreviver como uma força cultural, relevante para o público em geral, ele precisa lidar com os perigos e ansiedades que se abatem sobre nós em um mundo assim. É isso que o cinema de Cronenberg faz tão bem. Na segunda parte deste artigo, focarei em alguns de seus filmes em que as mutações são um tema central.
Há muitos Gregor Samsas nos filmes de Cronenberg: o processo pelo qual o personagem de Kafka se transforma em um inseto gigante não se repete apenas na forma cinematográfica, mas serve como tema recorrente sobre o qual Cronenberg constrói diversas variações. Seth Bundle (Jeff Goldblum), em A Mosca, é o exemplo mais óbvio: o cientista que bagunça as coisas em seu laboratório e acaba misturando seus genes com os de um inseto. Na obra-prima de Kafka, o “clima” é de um drama familiar horrível que pode lembrar o leitor de Strindberg ou Kleist. No caso de Cronenberg, somos levados a um cenário futurista de ficção científica em que Bundle tenta criar um meio de teletransporte, que ele considera suscetível de causar toda uma revolução nos limites comuns da humanidade. Se ele tiver sucesso, a história fará chover glória sem fim sobre ele, e será homenageado como um dos maiores cientistas e inovadores de todos os tempos – um novo Galileu, um novo Kepler, um novo Einstein! Mas grandes esperanças raramente cumprem sua promessa na arte de Cronenberg.
Não há uma gota de otimismo barato em A Mosca: é um filme extremamente agradável de assistir, bem trabalhado em todos os aspectos técnicos, uma obra-prima da narrativa no cinema, mas sua mensagem está longe de ser doce. A Mosca é na verdade uma tragédia. Para aqueles de vocês que não assistiram, por favor, pule para o próximo parágrafo para que você não tenha sua diversão estragada pela minha revelação de seu final. A Mosca pode ser vista como uma tragédia porque mostra como um cientista passa por um terrível infortúnio, tendo seu organismo monstruosamente transformado pelo processo tecnológico que pretendia dominar, e acaba tendo que pedir à mulher que ama (encarnada pela linda Geena Davis) para ajudá-lo no suicídio. As condições de vida, para ele, foram tão prejudicadas por seu experimento, que sua única escolha acaba sendo exigir que alguém o afaste de sua miséria. Josef K, em O Processo de Kafka, sente que está sendo morto “como um cachorro”; da mesma forma, a morte de Seth Bundle é um evento terrível, sangrento e grotesco – no qual ele é assassinado como uma mosca desagradável. As coisas ficaram tão horríveis que o mundo precisa se livrar do monstruoso inseto humano que ele tragicamente se tornou.
Mas seria degradante dizer que Cronenberg é uma mente que só pode imaginar as transformações no corpo humano devido à intervenção e manipulação tecnocientífica. Em M Butterfly, por exemplo, as transformações pelas quais passa René Gallimard (Jeremy Irons) nada têm a ver com sua estrutura genética, nem com cirurgia, eugenia ou efeitos colaterais laboratoriais. Gallimard, um diplomata francês que trabalha na China, na embaixada de Pequim, começa sua metamorfose quando assiste a uma apresentação da ópera Madama Butterfly, de Puccini. Cronenberg nos leva, com seus talentos conhecidos como um contador de histórias convincente, em uma espiral descendente que mostra quão profundamente Gallimard terá sua identidade alterada e perturbada no processo de vida que o filme encapsula.
A princípio, Gallimard é mostrado como uma pessoa arrogante, muito etnocêntrica, certa de que é a encarnação viva da civilização e da delicadeza: acredita que a presença ocidental na China e na Indochina é apreciada pela maioria da população, e tem certeza de que os Estados Unidos vai ter sucesso nos esforços de guerra no Vietnã e Camboja. Ele é um homem casado, e sua esposa (Barbara Sukowa, que recentemente encarnou Hannah Arendt no filme de Margareth Von Trotta) nunca suspeitaria que Monsieur Gallimard fosse nada além de um marido amoroso e fiel – e definitivamente heterossexual.
M Butterfly, entre os filmes de Cronenberg, é um dos mais ricos em termos de possibilidade de discussão de questões de gênero. A identidade sexual é apresentada como algo que está longe de ser sólido e imutável – também sofre mudanças e mutações. Gallimard pensa que é heterossexual, um cara heterossexual “normal”, mas sua experiência na ópera de Pequim colocará isso em questão quando ele se apaixonar por uma diva da ópera (um homem vestido de mulher). O desconhecimento de Gallimard da realidade cultural chinesa é evidenciado pelo fato de que ele parece desconhecer completamente que as personagens femininas, nos espetáculos operísticos da China, são interpretadas por homens – um costume que existiu também no passado do Ocidente (por exemplo, na Inglaterra, durante a época de Shakespeare, algo descrito, por exemplo, pelo brilhante filme de Richard Eyre Stage Beauty).
M Butterfly está cheio de delírios de Gallimard: suas crenças não correspondem aos fatos. Ele, por exemplo, acredita que se apaixonou por uma chinesa, uma diva da ópera, quando na verdade está sendo usado por um espião do Partido Comunista que está coletando informações sobre ações militares ocidentais na Indochina. Gallimard acredita ter encontrado o amor verdadeiro fora dos laços do casamento e se entrega à sedução calculada do espião travesti. Quando ele acordar para o que realmente está acontecendo, toda a estrutura de sua personalidade será estilhaçada.
Na ópera de Puccini, a menina se mata após ser abandonada pelo estrangeiro americano; no filme de Cronenberg, as posições mudam: agora é o ocidental quem vai se matar por causa do abandono que sofreu. Quando o sonho se desfaz e morre, quando Gallimard descobre toda a verdade e percebe que foi usado, então a utopia passada do amor se transforma em frustração suicida e autodestruição.
A Mosca, afirmei alguns parágrafos atrás, pode ser vista como uma tragédia; bem, M. Butterfly é outra. Seu núcleo trágico está na rachadura na continuidade da identidade. A psique de Gallimard é quebrada pela morte repentina de sua ilusão. Ele estava gravemente enganado sobre a China – e nunca conheceu a “mulher” que ele dizia amar. No final do processo que o filme narra, ele está totalmente confuso sobre sua própria sexualidade, incerto e abalado: perdeu toda a confiança anterior em sua “retidão”, sua “normalidade masculina”. Em sua viagem de morte, no ritual em que se sacrifica, muito oriental, como se tentasse um hara-kiri, Gallimard tornou-se ele mesmo o oriental e o travesti.
Os limites bem definidos de sua personalidade anterior são esmagados por novas experiências. Ele é ilimitado e insano. Ele corta sua própria garganta na frente da platéia de prisioneiros, tornando-se assim uma personificação da Madama Butterfly de Puccini. O brilhantismo dessa obra-prima do cinema, que considero um dos clássicos mais desvalorizados dos anos 1990, está na descrição autêntica das mutações que podem ocorrer no corpo e na mente humanos.
A Gallimard, em M Butterfly, viveu uma grave “crise de personalidade”. Tom Stall (Viggo Mortensen), em Uma História da Violência, lutará com algo semelhante. Neste filme, Cronenberg concentra sua atenção em uma tentativa de mudança voluntária de identidade. O homem que conhecemos no início do filme, Tom Stall, logo descobriremos ser uma invenção de Joey Cusack, que queria trocar sua pele como uma serpente e abandonar seu próprio passado para trás.
Tom Stall é uma idealização do verdadeiro homem de carne e osso, Joey Cusack, que, depois de muito derramamento de sangue no ambiente de gângster durante sua vida em sua nativa Filadélfia, decide que vai deixar a vida do crime para trás e se tornar um cidadão modelo e homem de família. Quando o filme de Cronenberg começa, parece que ele conseguiu: ele tem uma linda esposa, e eles se envolvem em brincadeiras afetivas muito sexy; seus dois filhos parecem estar indo muito bem, apesar dos valentões na escola e de algumas brigas de beisebol. Mas quando algo está indo bem em um filme de Cronenberg, prepare-se: é um sinal claro de que estamos caminhando para o desastre.
Joey Cusack tentou transformar sua identidade, tentou personificar sua fabricação de uma personalidade ideal, mas esqueceu algo: todos que o conheceram em seu passado permitiriam facilmente que ele escapasse para outras identidades. Há uma frase em Magnolia de P. T. Anderson que parece ser uma descrição de sua situação que se encaixa como uma mão em uma luva: “Podemos ter acabado com o passado, mas o passado não acabou conosco”.
O personagem de Ed Harris, no filme, parece um monstro assustador que enfia a cabeça para fora do abismo do Passado. Joey Cusack pode ter sentido que teve o suficiente de seu passado, mas bem… seu passado não teve o suficiente dele. Ele é obrigado a experimentar um re-despertar sombrio do passado que ele erroneamente supôs ter enterrado. Uma História da Violência, além de ser um thriller muito emocionante de assistir, revela muito sobre a condição humana. Um homem quer jogar fora quem ele era e se remodelar, tornando-se outra pessoa: quem de nós não sentiu um desejo semelhante em algum momento de nossas vidas? Mas o passado está incorporado em nós de tal maneira que nunca seremos capazes de descartá-lo como uma serpente faz com sua pele.
Para resumir, eu diria que o mérito artístico de Cronenberg está em sua capacidade de retratar e discutir a humanidade como uma entidade dinâmica, mudando ao longo do tempo, e não apenas um instrumento de forças externas (como uma folha em um riacho), mas também em tentativas de auto-remodelação e autotranscendência. Ao longo da história da filosofia ocidental nos últimos três milênios, alguns grandes pensadores enfatizaram a mutabilidade da Natureza: Heráclito, por exemplo, disse que “tudo flui” e que é impossível banhar-se duas vezes no mesmo rio; seu discípulo do século XIX, Friedrich Nietzsche, também sugeriria em seu visionário poema filosófico Zaratustra a mutabilidade do Homem, retratado como um equilibrista que atravessa o abismo cujas margens são as feras (atrás de nós) e o Übbermensch (à nossa frente).
A impressão que tenho depois de viajar com as criações de Cronenberg é que ele merece ser visto como um filósofo do cinema profundamente preocupado em compreender as mutações: os humanos, para Cronenberg, nunca foram e nunca serão criaturas fixas. Vamos vagar pela Terra trocando nossa pele como serpentes e tentando transcender o presente através de remodelações tanto de nossos ambientes naturais quanto de nossos corpos e mentes. Na obra de Cronenberg, nos familiarizamos com a ideia da Humanidade como uma entidade mutante cuja glória futura está longe de ser garantida: pode acontecer, seus filmes parecem dizer, que a História se torne um pesadelo do qual não poderemos despertar. E simplesmente por isso: o pesadelo é real, e nós mesmos somos monstros de nossa própria criação.
FILMOGRAFIA SELECIONADA – David Cronenberg’s greatest works:
Publicado em: 06/07/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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